A CALIGRAFIA DO LIVREIRO
- Paulo Victor Albertoni Lisboa
- 4 de mar. de 2022
- 2 min de leitura
Por PAULO VICTOR ALBERTONI LISBOA com arte de ADRIANA AFFORTUNATI
ALGUMAS SEMANAS ATRÁS, RECEBI DOS CORREIOS uma encomenda que eu não julgava ser um livro. Eu até aguardava alguns livros usados, mas a caixa era desproporcional para um livro sozinho. Aqui em casa, os livros normalmente chegam em “doses homeopáticas”.
Abri a primeira caixa e dentro da caixa havia outra caixa do tamanho de um livro na qual havia uma mensagem escrita à mão. Com uma mensagem muito otimista e acolhedora, o livreiro desejava saúde e leveza na passagem da pandemia. Virei a caixa e um envelope de plástico se soltou e caiu no chão. Li uma outra mensagem: “Use máscara!”. Um envelope de plástico havia sido colado na caixa, naquela do tamanho do livro. Dentro do envelope de plástico, o livreiro havia enviado também uma máscara cirúrgica.
Houve uma vez em que eu me dirigi aos correios com uma caixa reaproveitada na qual era possível ler escritos de controle de estoque de uma editora. Já nos correios, a atendente perguntou se aquela era uma remessa da editora e eu disse que não. Ela perguntou se eu havia escrito aquelas coisas e eu disse que não. Então, ela cobriu a caixa toda com uma fita que cobriu toda a escrita de estocagem e escondeu tudo o que não era pra ser lido por ninguém, nem pelo entregador, nem pelo destinatário.
Nas caixas de embalar encomendas não se pode escrever nada que não seja permitido pelos correios. É o que diz a regra. Por isso, o livreiro colocou uma caixa dentro da caixa para assegurar que a sua caligrafia chegasse à leitura do destinatário.
Por um instante, eu não soube o que fazer com aquela caixa com o livro. Porque caixas com escritos administrativos são facilmente rasgáveis, picotáveis, descartáveis. Mas, a caixa do livreiro tinha caligrafia própria, estava autografada e... O livreiro que me perdoe, mas a verdade é que essa hesitação toda não demorou muito tempo e eu a joguei fora.
O livreiro podia ter escrito uma carta, ter escrito a sua mensagem em um computador e impresso em um papel padrão com um texto padronizado e replicado inúmeras vezes, ou escrito em máquinas analógicas, martelado letrinhas em uma folha sulfite e passado pelas máquinas fotocopiadoras. Não ignoro que a mensagem tenha padrão, mas a opção pela caligrafia pode ser também a opção do livreiro por um traço, um vestígio, uma marca da sua pessoalidade.
Quis imaginar que o livreiro fazia, assim, política de escrita. Porque a sua caligrafia levava algo de singularidade.
Como o livreiro conhece bem as regras dos correios, sabe também que é preciso esconder o escrito. Sabe ainda o livreiro que as folhas e as impressões se perdem, notas fiscais e máscaras vez ou outra caem no chão. É preciso escrever na caixa dentro da caixa para que o comprador gaste um pouco da sua voracidade e dê de cara com a caligrafia do livreiro na caixa que contém a encomenda.
Continua:
https://www.facebook.com/photo/?fbid=401519034769696&set=a.220613786193556

Opmerkingen