DA ETNOGRAFIA AO GATO
Claude Lévi-Strauss escreveu, em “Tristes Trópicos” (1955), que a vocação do etnógrafo ou da etnógrafa se apresenta ao sujeito sem que necessariamente tenha sido ensinada. O antropólogo falava de uma vocação ao descentramento etnológico, a experiência de um exílio cultural, como um estrangeiro-aprendiz.
Em “Tristes Trópicos”, depois de suas viagens e de sua volta conclusiva ao final do seu romance autobiográfico, o etnógrafo se dá conta do seu etnocentrismo, da sua etno-logia/sua etno-lógica, e dos outros etnocentrismos, outras etnologias distribuídas por todo o globo terrestre.
A uma certa altura, o autor pergunta, então: qual o estatuto da invenção da etnografia no interior das sociedades modernas e industrializadas? Por que, afinal, o chamado Ocidente inventou a etnografia?
Claude Lévi-Strauss caracteriza a etnologia enquanto uma disciplina que eleva as sociedades diferentes e rebaixa a sociedade do próprio pesquisador; o exercício de rebaixar a sociedade do observador ocorreria porque no pesquisador a sua sociedade fala mais alto no que dizem as suas teorias sobre o Outro. Tendo em vista o contexto de surgimento e consolidação da etnologia, a saber, o final do século XIX e o início do século XX, a disciplina produziu no interior do campo científico ocidental algo como uma estratégia ou método de pesquisa, a busca por simetrias.
Há de ser notado que, na escrita de Lévi-Strauss, o surgimento da etnografia está longe de ser um fenômeno de engrandecimento da civilização ocidental. Podemos ler na sua escrita a caracterização da etnografia enquanto um efeito da crise civilizatória.
Enquanto o colonialismo persistiu no século XX, a experiência etnográfica – essa modalidade de aprendizagem radical que faz a aposta na exposição do próprio corpo à pesquisa de campo – produzia uma “mutilação psicológica” no pesquisador. Lévi-Strauss denomina essa afetação como o efeito de um remorso civilizacional.
É como se o afeto brotasse junto da aceleração civilizacional, da aceleração tecnológica, é claro, do espalhamento de uma economia-política sobre as demais economias do globo terrestre. Portanto, trata-se de uma aceleração acompanhada da dispersão de formas dominantes de vida em detrimento de formas minoritárias ou minorizadas.
Seguindo os escritos de Claude Lévi-Strauss, a aceleração acabaria por desintegrar muitas das formas de vida e das formas de se viver.
Diante dessa propensão à desintegração de estruturas – estruturas sociais, estruturas de pensamento, estruturas da natureza –, a derrocada da antropologia de gabinete e a emergência de uma antropologia de campo responderiam à urgência descritiva.
O autor é um defensor incansável da descrição de pessoas, sociedades, povos, modos de vida, ecologias, até mesmo das águas, das florestas, do céu no entardecer.
Lévi-Strauss descreve também as simetrias encontradas na estrutura de pensamento daquele que descreve e das sociedades que estuda, os povos que estuda, daqueles com quem compartilha uma experiência de aprendizagem antropológica.
Dessa prática de inventariar as formas sociais, o pesquisador adquirirá, então, um olhar multicentrado das etnologias. Do que resulta a atenção antropológica às variações lógicas e aos modos de vida da espécie humana, especialmente a atenção às operações inconscientes do “espírito humano”.
Ao mesmo tempo que Lévi-Strauss caracteriza a marcha civilizatória enquanto marcha entrópica, “Tristes Trópicos” narra a conquista de um olhar multicentrado, contra o olhar etno-cêntrico. Através da simetria entre culturas e estruturas civilizacionais, o escritor narra a formação um olhar da multicentrado da espécie humana e, portanto, um olhar da espécie humana no seu conjunto de variações de organização social, culturas e lógicas inconscientes.
As viagens descritas, como a volta à Birmânia, terminam por restituir o lugar do humano como espécie entre outras espécies, entre outras formas de vida, estruturas entre outras estruturas, é claro, também as estruturas simbólicas, as estruturas de pensamento, porém, estruturas criadas pela humanidade – e inconscientemente pelo “espírito humano” – em meio às estruturas da natureza.
Portanto, sob influência dos escritos de Jean-Jacques Rousseau, a alteridade, a relação entre Eu e o Outro, inclui a alteridade interpessoal, intersocial, interespécie e as operações inconscientes do “espírito humano”.
Assim, os gêneros literários mistos de “Tristes Trópicos”, incluindo estratégias textuais típicas de diário de campo, terminam por nos convidar a pensar a etnografia como um caminho de escrita na direção da escrita do Outro. Enquanto o etnógrafo escreve o outro, o etnógrafo escreve a si mesmo, e acaba por contemplar outras estruturas da natureza, como o mineral, e outras formas de vida, como as botânicas e as animais; convocando as leitoras e os leitores à política interespécie, às políticas da natureza, no exercício antropológico que restitui o lugar do humano na vida planetária.
“suspender a marcha, conter o impulso que o obriga a tapar, uma após outra, as rachaduras abertas no muro da necessidade e a concluir a sua obra ao mesmo tempo em que fecha a sua prisão esse favor que toda sociedade ambiciona, quaisquer que sejam as suas crenças, o seu regime político e o seu nível de civilização; no qual ela coloca ao seu lazer, o seu prazer, o seu repouso e a sua liberdade; oportunidade, vital para a vida, para se desprender, e que consiste – adeus, selvagens!, adeus, viagens! –, durante curtos intervalos em que nossa espécie tolera interromper seu labor de colmeia, em captar a essência do que ela foi e continua a ser, aquém do pensamento e além da sociedade: na contemplação de um mineral mais bonito do que todas as nossas obras; no perfume, mais precioso do que os nossos livros, aspirado na corola de um lírio; ou no piscar de olhos cheio de paciência, de serenidade e de perdão recíproco, que um entendimento involuntário permite por vezes trocar com um gato” (Claude Lévi-Strauss, 1955, último parágrafo).
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