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ESCREVER O OUTRO, ESCREVER A SI MESMO

  • Foto do escritor: Paulo Victor Albertoni Lisboa
    Paulo Victor Albertoni Lisboa
  • 8 de mar. de 2022
  • 2 min de leitura

Até o início do século XX, nós não tínhamos clareza do quer que fosse um etnógrafo e uma etnógrafa. Muito menos tínhamos a clareza do uso que um etnógrafo ou uma etnógrafa poderia fazer de gêneros literários, como o uso de um diário, durante a sua pesquisa de campo, durante a sua estadia junto a um outro povo, o registro diário de sua experiência, o registro diário das afetações, as afecções da experiência de seu exílio em relação ao seu próprio povo ou o exílio de sua própria cultura; bem como o “estágio” – por assim dizer – que o etnógrafo ou a etnógrafa faz enquanto estrangeiro-aprendiz ou estrangeira-aprendiz.

Se lermos os escritos de antropólogos e antropólogas enquanto registros de um entusiasmo e também de uma “condição febril” – breve alusão aos dias febris de Malinowski entre os trobriandeses –, talvez possamos compreender os componentes da experiência etnográfica, tais como as viagens, os deslocamentos, a relatividade do que é estranho e/ou familiar, e refletirmos sobre tais componentes distribuídos em experiências outras, não circunscritos às experiências de especialistas.

Pensar e refletir sobre traduções desse entusiasmo e da “experiência febril”, ou desse pântano emocional – expressão retomada por Raymond Firth, de autoria atribuída a Clifford Geertz –, é lidar com o aprendizado antropológico, e em particular o aprendizado etnológico, dispondo do próprio corpo para aprender um outro modo de vida, uma outra maneira de viver experiências cotidianas, experiências ordinárias e extraordinárias.

Aqueles homens que nunca saíram de seus escritórios, chamados de “intelectuais de gabinete”, passaram a ter como o seu contraponto os antropólogos que iam a campo. A imersão no campo deu destaque, assim, aos acontecimentos da vida cotidiana, aqueles acontecimentos que precisam ser testemunhados. Ou seja, é preciso estar lá e participar da vida cotidiana, quando até mesmo as perguntas emergem a partir do testemunho daquilo que é imponderável.

O diário de Malinowski nos dá acesso aos imponderáveis, às observações etnográficas sobre a morfologia social de uma sociedade diferente da sociedade do observador; mas, o diário registrava também, nas palavras de Raymond Firth, “a sensação de confinamento, o desejo obsessivo de voltar mesmo que rapidamente a seu próprio meio cultural, o desânimo e as dúvidas sobre a validade do que se está fazendo, a vontade de fugir para um mundo fantasioso dos romances e devaneios, a compulsão moral de arrastar de volta para a tarefa da observação de campo”.

Ali, podemos ler nos seus escritos uma experiência de aprendizagem. Um diário de campo, complexo e contraditório, que se transforma em um instrumento de autoanálise – expressão utilizada pelo próprio autor –, o diário como um instrumento de autoanálise antropológica, um instrumento para aquele que experimentou uma condição de exílio da própria cultura para aprender com um outro – sem dúvida um aprendizado que não visa uma fusão ou a dissolução de diferenças.

Essa experiência diz respeito a um exílio metodológico da sua própria cultura, do seu modo de vida, da seu modo agir e pensar. Como se o observador do gabinete vivesse um efeito reverso ao submeter o observador à lógica das relações daqueles que são observados, submetendo, assim, o observador a uma reversão da observação. Enquanto escreve o outro, escreve a si mesmo.




 
 
 

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