FORA DO ESPELHO
- Paulo Victor Albertoni Lisboa
- 4 de mar. de 2022
- 3 min de leitura
Poucos autores e autoras, no interior da psicanálise, têm enfrentado o tema da “identificação com animais”. No “Seminário de psicanálise de crianças” (1982), Françoise Dolto abriu um caminho investigativo sobre a presença de animais domésticos na vida das crianças, o que, por si só, realizou um importante contraponto à abordagem circunscrita à fobia de animais, dado que o “animal fóbico” teve ampla investigação desde o “Caso Hans”. Dolto pontuou, muito brevemente, uma diferença entre identificações com animais domésticos e as identificações com animais selvagens, fez considerações sobre as identificações das crianças por ela atendidas. É verdade que, vez ou outra, cairá sobre seus comentários o pressuposto da “falha” da simbolização, porém, a psicanalista inseriu o debate da identificação com o animal junto ao tema mais amplo da identificação, remetendo o tema ao conjunto de questões da imagem inconsciente do corpo, do estádio do espelho e do lugar do rosto parental na operação especular de um corpo organizado.
Os comentários de Dolto, em que pesem diferenças de abordagem, abrem um campo de investigações sobre a identificação com o animal e nos convidam a fazer perguntas sobre a presença desses animais: quais espécies animais, qual ecologia implicada pela presença animal? Vale lembrar que, já distante de Dolto, em se tratando de domesticação animal ou da presença de animais selvagens na vida cotidiana, a vida psíquica, o parentesco/a organização social, bem como a linguagem, encontram-se entrelaçadas com a ecologia – por assim dizer, uma ecologia política, uma cosmopolítica dos processos identificatórios.
No campo de investigação, o contraste com a abordagem linguística parece produtivo. Porque nós sabemos, pelo menos desde a linguística de Émile Benveniste (1969), que são significantes também o voo do pássaro, a chuva, o relâmpago, as montanhas, etc. E a etnografia tem demonstrado que os significantes são mais ou menos significantes conforme sua incidência nas ecologias e a receptividade das cosmologias particulares. É claro que tais variações são motivadas por diferentes fatores, mas não podemos deixar de indicar a diversidade dos sistemas semiológicos, das sociedades, das culturas e das ontologias políticas.
A leitura dos escritos psicanalíticos a partir da investigação da presença animal (e por que não vegetal, mineral?) coloca novas perguntas e nos leva de volta a Dolto. Não haverá, então, um campo de investigação das forças anímicas fora do espelho? Tal pergunta move o debate na direção das identificações não-narcísicas e antinarcísicas com outras espécies, tensionando o dualismo natureza e cultura no interior da psicanálise.
Isto foi parcialmente discutido por Deleuze e Guattari, em “O Anti-Édipo” (1972) e “Mil Platôs” (1980). Entretanto, o tema colocará uma nova dificuldade quando situar outras espécies (e suas ecologias) na dinâmica da casa, junto ao espaço da convivialidade parental e à linguagem humana.
Radmila Zygouris, em “Nem todos os caminhos levam a Roma” (2006), inclui as categorias de fisicalidade e interioridade, lidas a partir dos escritos de Descola, na caracterização do que o pensamento ocidental e a cosmogonia “naturalista” constituem enquanto "interioridade humana". A psicanalista acaba por reconhecer a particularidade da construção da “interioridade humana” no interior das sociedades ocidentais e de sua cosmogonia “naturalista” porque outras ontologias abrigariam, então, outros processos de identificação entre humanos e não-humanos. Ao convidar os leitores e as leitoras à investigação dos processos de identificação nas diferentes ontologias, Zygouris insere o Eu-espécie no centro das ficções de natureza-cultura.
Diante dessas perguntas, muitos diálogos são abertos. Por exemplo, o diálogo com Donna Haraway e seu “Manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa” (2003); o diálogo com Tânia Stolze Lima e sua etnografia “Um peixe olhou para mim” (2005); o diálogo com o diário mítico e interespécie de Nastassja Martin, em “Escute as feras” (2018), entre outros.
Tudo isso para voltar finalmente ao espelho e encontrar o Fora do Espelho. Estará lá algo da alteridade interespécie, o Outro espécie?

Comments