Grafias do impossível
O que é uma aprendizagem? Desde a década de 60, foram muitas as leituras produzidas sobre a obra de Carlos Castañeda, leituras que contemplavam os mistérios que rondam a composição da sua obra, críticas dirigidas à escolarização do aprendizado do campo, a difusão desses saberes aprendidos e as denúncias que o próprio autor sofreu de seguidores.
Apesar disso, parte dos seus escritos continua muito viva e continuamente retomada sobretudo no que diz respeito à aprendizagem antropológica, à observação participante e à reflexão que produziu sobre o inominável. Ofereço aqui a minha leitura.
Nos seus escritos, quase sempre estamos na companhia de Don Juan – a depender da tradução, mencionado como feiticeiro, bruxo ou xamã. Uma de suas lições seminais e crítica, dirigida aos antropólogos, é a seguinte: saber aprender já uma maneira de aprender pouco.
Don Juan sugere que é preciso aprender a aprender, ou aprender uma outra maneira de aprender. Como se fosse possível desfazer o aparelho de aprender, e então, ao invés de mudar de estação de rádio, desligar o rádio e trocar de rádio. Por isso, Don Juan dirá muitas vezes que esse aprendizado é perigoso e impossível.
Escolhi tratar aqui exclusivamente do sonho. Nas palavras de Don Juan, não encontram valor terminológico a “deformação” ou o “irreal”. O sonhar é uma alteração do estado de consciência, sim, também uma variação da percepção. Durante a atividade do sonho, ingredientes do impossível cotidiano ingressam na realidade onírica com tal força que a realidade onírica torna-se um mundo de impossibilidades existindo. Trata-se de uma variação de realidade que faz passar a figuração do impossível.
Seguimos a terminologia de Don Juan.
Na sua descrição, todos os seres humanos têm duas partes complementares, o tonal e o nagual. Dois componentes que começam a funcionar a partir do nascimento. O caminho para conhecê-los é denominado feitiçaria.
O tonal pode ser representado por um animal guardião. Sua formação poderá ser como aquela de um protetor generoso, ou despótico.
O tonal é também a “pessoa social”, que deverá funcionar como um guerreiro, de acordo com os ensinamentos de Don Juan.
O tonal é um centro, uma ilha que organiza a experiência que nós temos do mundo. Tudo que tem nome é tonal. E tal centro organizador lida também com o desconhecido, inominável, insondável e infinito.
O tonal é tudo o que conhecemos, tudo aquilo que conhecemos via descrição do mundo, tudo que se registra na ilha.
O tonal é aquilo que pôde ser nomeado de uma realidade muito mais ampla, infinita, disforme, informe, não organizada.
O tonal é uma ilha. Essa ilha é o mundo. Tudo que é nomeado vai ganhar mundo na ilha do Tonal. Ali onde se faz uma nomeação infindável nas margens da ilha.
Já o nagual é o que não lidamos em todo. Toda nomeação do nagual é uma nomeação parcial, porque só aceita nomeações aproximadas.
O nagual é perigoso de morte e age sobre o tonal da ilha.
Porque o nagual tem agência sobre o mundo e se relaciona de múltiplas maneiras com a ilha do tonal. Por esse motivo, toda viagem ao nagual é uma experiência e toda tradução é ou uma figuração ou uma descrição, um aprendizado que ganha mundo na ilha, um ensinamento que pode ser infinitamente revisitado.
Sugiro, por isso, que a ilha tem uma ontografia, é aquilo que ganhou nome e um mundo; uma ilha que nomeia coisas e trecos na relação infinitesimal com o nagual.
Toda ilha tem uma ontografia. Toda ontografia tem uma plasticidade relativa. Todo tonal tem uma ilha e um modo de relação com o nagual.
Don Juan explica que há um tonal individual, um tonal coletivo de cada sociedade e um tonal dos tempos.
O tonal pessoal se faz com o tonal coletivo e com o tonal dos tempos. O nagual se relaciona diferencialmente com todas as ilhas, a diferença é sempre uma modulação particular daquilo que um mundo pôde apreender do infinito, inominável. Ao mesmo tempo, o nagual margeia a ilha e age sobre a ilha, circundando a ilha do que não pôde ser apreendido do infinito. O nagual é o impossível de um mundo.
É importante lembrar daquela definição inicial. Todas as pessoas têm dois componentes que começam a se desenvolver no momento do nascimento. O caminho da sua investigação se chama feitiçaria, um caminho para um mundo e seu impossível.
A ilha é o impossível que deveio mundo.
Já o nagual é um impossível que não deveio ilha.
O nagual é um impossível que não se registrou na ilha. Um impossível ontológico que é um impossível cognitivo e impossível perceptivo. Porém, um impossível nomeável.
Através dessa etnologia Yaqui na fronteira do México e dos Estados Unidos da América, através dessa etnologia das beiras, das margens, do pré-mundo, do pós-mundo, extra-mundo, multiplicam-se ontografias do impossível.
E por que mesmo o sonho?
No sonho se figura e se diz algo do impossível de um mundo. Um impossível de uma ontologia, um impossível de uma ontografia. Porque quando se sonha se é parcialmente o impossível; e quando se acorda, o vigilante é aquilo que de impossível ganhou mundo, o que de impossível foi nômade, fez um percurso onírico e foi nascer na ilha.
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