GUIA FABULATÓRIO Nº 3 – DESESPELHAR OS OUVIDOS
- Paulo Victor Albertoni Lisboa
- 4 de mar. de 2022
- 2 min de leitura
Por PAULO VICTOR ALBERTONI LISBOA com arte de FERNANDO BURJATO
FICAR COM O OUVIDO ZUNINDO, zumbindo, chirriando. Um ruído estranho, que parece ser da própria cabeça. Começar a suspeitar do chiado de algum inseto que você não aprendeu a ouvir. E depois abandonar convicções como as de um som emitido por algum eletrônico, barulho nos encanamentos, buzina de carro na rua.
Confundir os sons, os corpos acústicos, a comunicação toda espalhada dentro e fora da sua cabeça, como quem sabe que algo chegou e não tinha como recebê-lo no corpo atual, ouvido pequeno, ou não tinha como sair pelos ouvidos curtos.
Expandir a escuta para além da capacidade auditiva, perguntar às ventosas de uma cobra peçonhenta se aconteceu alguma coisa, às asas do grilo estridente que voa e soa, à linha lateral do peixe, à membrana plasmática de um protozoário, ao apêndice de uma aranha, às substâncias voláteis de uma árvore, aos filamentos dos cogumelos.
Fazer o ouvido conversar com um outro órgão de um corpo outro, de outra espécie, de outro gênero, de outra família, de outra ordem, de outra classe, filo, reino. Conversar também com as estruturas dos inorgânicos, seres não vivos ou vivos ao seu modo e que não fizeram prosperar estruturas no reino dos vivos.
Ser espelhado pelo cristal, pela lua, pelos olhos do roedor noturno no forro da casa, pela movimentação dos girassóis. Ser surpreendido pelo grito da araponga, ouvir o som do ferreiro no seu canto, sem saber se ela aprendeu a cantar o ferreiro ou se o ferreiro inventou um ofício que soa o canto da ave. Responder ao chamado, ao convite para inventar um ofício para cada canto de ave, como um ofício de bem-te-vi, um ofício de pardal, de andorinha, de urubu, de beija-flor. Qual poderia ser o ofício de beija-flor senão prosperar a colaboração extra-animal, e suas parceiras botânicas do extra-vegetal, em sincronias com as abelhas, os morcegos, com a chuva, com o jardineiro. Não se esquecer de quebrar o espelho num encontro cósmico. Ser desespelhado na gota do orvalho.
Zunindo, enfim, com a chuva, com a água que bate no telhado da casa, na parte de cima da superfície das correrias de ratos, gatos e dos murmurinhos de pombos.
Finalmente, escutar um sonho no qual a casa tem um teto de vidro, repleto de imagens registradas na parte debaixo da superfície, destinadas ao consumo, uma casa com um teto de vidro tão inflado de figurinhas que o Homem se deita na sua cama e só pode ver o teto figurado da sua própria cabeça.
Testemunhar um acontecimento contra-vigília, um estouro do teto de vidro, derramar os estilhaços e a algazarra de bichos, minerais, vegetais e seres invisíveis incorpóreos sobre o Homem, desmontando o Homem.
Negociar novos acoplamentos de componentes, de estruturas perceptíveis. Sentir-se estranhamente um ser cósmico.
E jamais! Jamais anexar novos órgãos na estrutura precedente, a que organiza os seus ouvidos-zunidos de Homem.
Continua:
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