Mais-sonhar
Imagine o leitor que diferentes povos construíram modos socialmente valorizados para a comunicação de sonhos. A etnógrafa Laura Graham situa dentre tais modos aqueles dos Xavante. A comunicação dos sonhos é pensada enquanto enunciação. Ou seja, trata-se da enunciação de alguém que arranja seu material onírico em palavras, imagens, sons, e os dirige a um outro. A etnografia de Laura Graham, "Performance de Sonhos: Discursos de Imortalidade Xavante" (2018), boa etnografia, escapa da sobredeterminação metafísica e epistemológica.
A sua escrita lembra os estudos literários da estética da recepção. A etnografia é, por sua vez, complexa e rica em detalhes da sua observação participante, e algumas vezes nos permite imaginar o inconsciente participante que trabalha junto dos gravadores da pesquisadora e também dos gravadores dos interlocutores da pesquisa. E, especialmente, porque sua obra dialoga com autores do campo da estética e da cultura, o que nos faz lembrar de trabalhos de linguistas e outros estudiosos do campo da linguagem, por exemplo, a estética da criação verbal (Bakhtin), a retórica da imagem (Barthes), os efeitos estéticos (Jauss e Iser).
Na sua etnografia é fundamental o que ela denomina as formas que são socialmente interpretáveis. No caso xavante, tais formas são encontradas em uma ética bastante sofisticada e praticada por grupos etários e suas relações de gênero, por vezes, desiguais relações de gênero. Entre os sonhos Xavante, há os sonhos que são comunicados aos grupos na forma de cantos. Esses sonhadores cantam os seus sonhos aos outros, e há sonhadores que aprendem a cantar sonhando. Os seus sonhos passam do individual ao coletivo e são percebidos como índices da coesão do grupo e de sua solidariedade. E, é claro, as canções também voltam do coletivo ao individual. A produção-circulação-recepção (tema caro a linguistas e etnógrafxs) inclui a responsividade no material onírico (de que falam/escrevem psicanalistas e psicólogxs), incluindo, no entanto, a responsividade coletiva, tornando a recepção coletiva um evento caro à criação do sonhar e das respectivas performances xavante - sonhos-performance de uma "sociedade contra o Estado"?
Ponto singular da escrita de Laura Graham é o modo xavante de fazer passar um sonho-canto individual ao coletivo, quando a comunidade, em que pesem as suas diferenças, aprende a narrar, cantar e dançar coletivamente os sonhos uns dos outros.
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