NA LINHA DO TREM, UM HOMÔNIMO
- Paulo Victor Albertoni Lisboa
- 4 de mar. de 2022
- 2 min de leitura
Por PAULO VICTOR ALBERTONI LISBOA com arte de MARCIA CYMBALISTA
NOS TRILHOS DA ESTRADA DE FERRO ARARAQUARENSE trabalhava o meu avô, um homem negro. O meu pai conta que ele chefiava uma equipe de uns quinze homens, a capina era feita manualmente para controlar o crescimento de ervas daninhas no trilho do trem e as peças do trilho eram supervisionadas.
Na estrada de ferro, especialmente no interior das áreas rurais, o trilho pode ser submerso pela vegetação circundante. Tais plantas podem causar patinamento dos vagões e, quando estão secas, o atrito pode provocar incêndios. A capina era tarefa essencial à segurança do trânsito dos vagões, tanto quanto era essencial a avaliação da madeira dos trilhos que apodrece com a intensidade das chuvas, da exposição ao sol e do acobertamento produzido pelas plantas. Essas madeiras colocadas nos trilhos eram chamadas de dormentes, peça de madeira que atravessa perpendicularmente as linhas (paralelas) dos trilhos. Talvez alguém ainda chame essas peças de chulipa e faça mais sentido agora lembrar da expressão “ripa na chulipa”. Será? No futebol, o locutor Osmar Santos gritava “ripa na chulipa!”, quando a equipe, de passe em passe, chegava finalmente ao gol.
O contragolpe é que, embora o avô fosse trabalhador dos trilhos, pouca história da sua origem chegou aos seus netos. De Caculé, interior da Bahia, conhecemos a sua adoção por uma família de descendentes de portugueses.
Quis a escrita da história que o meu avô e o fundador de Caculé fossem homônimos – ou xarás. Segundo as versões da história oral do município e dos registros disponíveis, em meados do século XIX, um homem escravizado fugiu da Fazenda Jacaré e foi dado por desaparecido. Muito tempo depois, um outro homem escravizado teria encontrado Manoel Caculé vivendo próximo a um rio, em um local descrito como um rancho, mencionado também como os arredores da “lagoa do Caculé”, e mais recentemente, Rio do Antônio. Ainda na história oficial, consta que o Caculé foi denunciado e os donos da fazenda foram à sua captura. Ao que parece, Caculé teve apoio dos abolicionistas e teria pago, então, pela sua alforria. A jornalista Fabiana Aquino Coelho caracteriza a cidade de Caculé enquanto “quilombo de um homem só”.
Ao Caculé é atribuída ainda a existência de um ponto de paragem essencial à estrada que conectava alguns caminhos de viajantes daquela região com outras estradas de Minas Gerais. A referência aos caminhos e também a homonímia relacionam duas (ou múltiplas) existências paralelas, dessas existências que desconhecem uma à outra.
Lembro do vô sentado na varanda, na sua cadeira de fios de plástico coloridos, enquanto as pessoas passavam em frente à sua casa e o cumprimentavam, chegando pra puxar assunto. De onde vinham, para onde iam? Alguns só se agarravam ao portão e já tagarelavam, outros entravam e arrastavam uma cadeira para gastar conversa. A minha avó aparecia e estendia os seus tapetes de crochê.
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