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NAS RUÍNAS, UMA DANÇA

  • Foto do escritor: Paulo Victor Albertoni Lisboa
    Paulo Victor Albertoni Lisboa
  • 16 de mar. de 2022
  • 4 min de leitura

Por PAULO VICTOR ALBERTONI LISBOA com arte de MARCIA CYMBALISTA


A PARTIR DE UM ENCONTRO REALIZADO EM 2012, geólogos nomearam um Novo Regime Climático da Terra, o Antropoceno. Depois de milhares de anos marcados pela estabilidade climática, tal nomeação da nova era geológica anunciava, pela primeira vez, a espécie humana enquanto agente de perturbação planetária.

Evidentemente, os anos seguintes foram povoados de intensos debates sobre a responsabilidade pelo colapso ambiental e das alternativas para sair do Novo Regime Climático. O livro “Viver em ruínas: paisagens multiespécies no Antropoceno”, de Anna Lowenhaupt Tsing (2019), é um livro ativista que acolhe o pessimismo dos estudos científicos e a invenção da esperança, afirmando uma tarefa crítico-ficcional: (d)escrever a emergência da vida.

Aliando os estudos das ruínas industriais em Oregon, ambientes contaminados por irradiação nuclear, destroços da Segunda Guerra em Berlim, aos catadores de cogumelos nas florestas da América do Norte, Anna Tsing transforma a nossa compreensão do que é ser refugiado. Vindos de Laos e Camboja, os Mien, Khmer, Lao e Hmong, dentre outros grupos étnicos e variações dialetais, ocupam as florestas, o principal cenário de seu livro, descritas através da busca por cogumelos, seu meio de vida comercial. Para encontrá-los, os catadores precisam procurar outra coisa, os seus sinais, linhas de atividade florestal, de árvores, arbustos, ervas e insetos: encontrar as linhas de vida, mesmo em contexto de degradação ambiental, marcados por incêndios, destroços ou contaminação. Há ainda situações além da floresta, nas quais os catadores vão coletar cogumelos à beira do vulcão.

Por essa razão, Anna Tsing nos provoca a pensar além das classificações dos seres, os cogumelos são emaranhados. Para encontrá-los na floresta, é preciso investigar as suas trajetórias, emular os movimentos multiformes florestais, até conquistar uma dança orquestrada pelas linhas de vida multiespécie. Não serão os catadores também viventes emaranhados nessa ecologia de variadas espécies animais, vegetais?

A autora insiste, então, na companhia dos cogumelos. Ela nos lembra que, abaixo das árvores, nas suas raízes também atuam os fungos. Nas estruturas conjuntas se desenvolvem micorrizas, pequenos filamentos que capilarizam uma cidade subterrânea sob os pés dos caminhantes da floresta. Seu exemplo recorrente é o dos catadores de cogumelos matsutake, mas ela nos leva a movimentos planetários muito diversos.

Esse conhecimento vivo do qual as pessoas, diferentes povos e etnias, suas cosmologias e também os diversos seres vegetais e animais participam da sua produção, faz uma ciência democrática. Anna Tsing opõe essa ciência democrática a uma ciência de plantation, aquela que preza pela separação da técnica e da natureza, pelo descolamento da espécie humana das linhas de vida, em razão da promessa de escalabilidade. Em outras palavras, a antropóloga é defensora de uma ciência multiespécie.

Isso porque nós também temos nossas linhas de vida, somos agregados multiespécies – vide a companhia de animais domésticos ou a microbiota do corpo humano. Portanto, uma espécie sozinha não faz um mundo. Os indivíduos são trajetórias contínuas, emaranhados das linhas de vida.

A proposição de Anna Tsing produz choques cataclísmicos para pensar o Antropoceno. Um destes é a crítica da noção de indivíduo e de liberdade que constituiu parte significativa da modernidade hegemônica. A liberdade como atributo exclusivo da espécie humana esteve nos fundamentos da aceleração do colapso ambiental. As linhas de vida comportam uma noção de liberdade multiespécie para pensar saídas ao Antropoceno.

Como Anna Tsing tem uma escrita ativista e com recursos literários, é ela quem nos lembra da importância da indignação e do sentido político da ocupação inclusive dos espaços degradados. “Ocupe as ruínas!”, um dos motes apresentados no livro, convocando-nos a exercer aquela que é, quem sabe, a potência mais radical da antropologia contemporânea, a escrita de outros mundos possíveis.

Por certo, uma espécie não faz um mundo sozinha. Mesmo entre os destroços, nas árvores doentes, brotam formas mutualistas de desenvolvimento vital – o que ela denomina “pequeno milagre”. Ali, o pesquisador/observador reconhecerá, apoiado pela escrita de Anna, não mais o antropoceno, e sim a antropo-cena – o humano na paisagem multiespécie.

Como se sabe, hoje, no Novo Regime Climático, as matas e as florestas ganharam destaque na política multiespécie. Anna insere a sua escrita no contexto de recuperação da habitalidade da Terra, como se alinhasse com as linhas de vida as suas linhas de escrita.

O livro dirige uma provocação ao especismo da Ciência, ou seja, aos usos do Homem e da espécie humana como medida de uma ética do conhecimento que subordina outros seres vivos aos interesses da espécie humana/suas formas sociais dominantes – por isso, uma crítica dirigida à ética especista. Sob a tentativa espúria de se destacar das linhas de vida, o Homem produziu uma marca geológica, uma ecologia de proliferação da morte contra a qual a autora nos convoca a escrever. Frente à crise climática, o livro de Anna Lowenhaupt Tsing faz da “natureza” uma palavra política, eco-política, cosmo-política, na procura crítico-ficcional por paisagens de habitalidade multiespécie.

Porque uma espécie não faz um mundo sozinha. A criação de um mundo é um processo atravessado por alianças de potências intersecionais, multiespécies e intraespécie. Não à toa, Anna nos recomenda “paciência infinita”, o cultivo de refúgios democráticos e aprender a dançar nas linhas de vida.


Continua:

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