O inconsciente e a noção de pessoa (multinatural)
HÁ MUITA COISA SENDO ESCRITA sobre a “antropologia dos sonhos”, a relação entre o sonhar e as ontologias e em particular os modos amazônicos de ação oniricamente orientados (etnologia indígena). Pouco se tem levado a sério do que Claude Lévi-Strauss escreveu sobre manter os mitos ameríndios longe dos psicanalistas. Então, eu que sou um etnólogo e também um psicanalista, levo a sério (e nem tanto) o que escreveu o antropólogo francês, e me coloquei a escrever aqui não mais do que algumas anotações sobre alguns esquecimentos na antropologia.
Waud Kracke escreveu, na década de 80 do século passado, a respeito de uma contribuição amazônica sobre a presença dos mitos nos sonhos. Certamente, munido de suas leituras de Lévi-Strauss, sabia que o mito - para a antropologia - jamais é individual, muito embora seja analisável e discutível em termos de estruturas inconscientes de pensamento. Ou seja, o tema da presença do mito nos sonhos era uma maneira de evidenciar muitos problemas. Embora não fossem os termos daquela década, é também evidente que o autor tinha a preocupação de confrontar possíveis epistemicídios. Ecos de Claude Lévi-Strauss e Pierre Clastres?
Trata-se de uma grande confusão conceitual entre as áreas, podíamos selecionar muitos exemplos, tal qual o do totemismo de Freud e o totemismo de Lévi-Strauss (sem falar do totemismo como ontologia, o mais recente, de Philippe Descola). Uma linha argumentativa (ou etnográfica?) atravessa toda a escrita de especialistas e não especialistas sobre a “antropologia dos sonhos”, ao que me parece motivada pela “Queda do céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (2010/2015). Muito provavelmente, uma parcela dessa motivação teve origem em leituras do prefácio de Eduardo Viveiros de Castro, na mesma obra, onde escreveu (conferiu ênfase) sobre os “brancos” sonharem apenas consigo mesmos, ali, quando o antropólogo teceu perguntas sobre os sonhos em socialidades amazônicas, em “sociedades contra o Estado”, em outras sociedades que não fossem as denominadas “sociedades das mercadorias”.
Sabemos e aprendemos que, para o perspectivismo ameríndio, o ponto de vista (humano) reside no corpo e que a capacidade de ver a si mesmo enquanto humano não é exclusiva à espécie Homo sapiens. Muitos outros seres veem a si mesmos enquanto humanos, embora não tenham corpos de espécie Homo sapiens. Portanto, para o perspectivismo ameríndio, cotias, abelhas e cedros, por exemplo, veem a si mesmos enquanto humanos (a natureza de um corpo “específico” guarda uma perspectiva de humanidade). Por isso, em uma comparação de Viveiros de Castro com o multiculturalismo, o autor traduziu que o perspectivismo ameríndio é multinaturalista. Aí reside um dos focos de interesse etnográfico do xamanismo perspectivista amazônico. Por quê?
Porque esses xamãs são pessoas multinaturais e podem transitar entre os diversos pontos de vista que povoam o cosmos. É interessante como o tema, depois da “virada ontológica”, reencontra um dos clássicos escritos de etnologia, “A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras” (1979), de Anthony Seeger, Roberto DaMatta e Eduardo Viveiros de Castro. O artigo é conhecido por ter consolidado a concepção de que, para aquelas sociedades, a corporalidade é o idioma simbólico focal. Seria excessivo, aqui, recordar o quão relevante é essa afirmação, uma vez que se dirige ao tema clássico da noção de pessoa (ver Marcel Mauss).
Essa lembrança da noção de pessoa (multinatural) deve ser capaz de rearranjar o debate sobre o inconsciente e a “antropologia dos sonhos” ou a antropologia dos modos de ação orientados pela atividade onírica. Existem ontologias dos sonhos? Descola sugere que o problema etnográfico é o dos modos de identificação. É importante lembrar também que, embora Viveiros de Castro tenha escrito algo sobre o desejo nas socialidades amazônicas, escreveu - especialmente em seus últimos trabalhos - sobre o “cogito canibal”, que é, antes de mais nada e mais um pouco, a etnografia do cogito ameríndio. Ao modo da tradução de Viveiros de Castro, “tudo o que existe pensa”.
É preciso lembrar dessas diferenças irredutíveis para, aí sim, enfrentar os pontos tensos desse diálogo. Afinal, por que, de acordo com os escritos d“A queda do céu”, os espíritos xapiri detestam caçadores que devoram suas próprias caças? E por que os espíritos xapiri preferem os meninos que crescem sem olhar para as mulheres? Ou por que o falecimento de uma pessoa pode ser ocasionado pela morte de seu duplo animal que lhe é conferido por meio da filiação paralela? Não se pode enfrentar nenhuma dessas questões sem recorrer à noção de pessoa/às noções de pessoa. Até para evitar que um novo diálogo seja sempre o velho e conhecido “diálogo colonial” entre pessoas e seus mundos originários desiguais.
Talvez o diálogo decolonial resida no modo como diferentes povos, em seus modos de viver e diferir, pensaram/viveram/conheceram/sentiram (e também experimentaram um não-saber d’) a relação entre desejo e transformação da pessoa.
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