O MULTIRREALISMO
- Paulo Victor Albertoni Lisboa
- 4 de mar. de 2022
- 3 min de leitura
Por PAULO VICTOR ALBERTONI LISBOA com arte de FERNANDA MAFRA
PENSEI EM ESCREVER UM TEXTO, mas rapidamente desisti da ideia. Não havia atmosfera emocional adequada para isso. Depois, as obras de Jaider foram cobertas de preto até a última sexta-feira. Segui então o luto das obras e não vamos observá-las, agora.
Aí chegou aqui o texto do Denilson e já era tempo de escrever outro texto. Denilson falou de muitas questões profundas, dentre elas estavam a dinâmica do mercado da “novidade indígena” e a sensação de ser puxado pela “mão do mundo ocidental”. Estavam lá também a sua decisão de desacelerar; sua crítica ao apelo dos “brancos” para que as lideranças indígenas “salvem o mundo”. Embora elusivo, as suas palavras conclusivas soaram como um “até breve”, “a qualquer hora a gente se vê por aí”. Denilson cobriu também as suas obras e se retirou.
Outros e outras artistas haviam feito críticas semelhantes ao mercado editorial de literaturas indígenas e literaturas nativas. Desde então o debate parece ter se espalhado, no início timidamente, aproveitando-se do ensejo de teorias indígenas da literatura, das artes plásticas, do teatro, do cinema, dos modos de compor coleções, das exposições e interações artísticas. Em resumo, encontraram a autodeterminação conceitual, organizacional e criativa, emulando modos de existir e diferir, contra a sua dissolução.
Anos antes, aconteceram muitos debates sobre os museus, as exposições etnográficas, e os debates foram atravessados por vozes plurais. Vimos ainda a repatriação de coleções e de acervos aos povos dos quais os objetos foram coletados. Amostras de sangue de testes obtidos ilegalmente foram repatriadas por pessoas indígenas no Brasil.
Recentemente, algumas das intervenções urbanas de artistas indígenas, as instalações, as pinturas e os mosaicos fizeram aparecer diante de nós o invisível e tornaram visível, portanto, muito daquilo que os “brancos” em condições normais não poderiam ver e pelo que podem ser vistos – existentes que limitam/regulam a prática predatória dos ecossistemas e atuam também como “espíritos” protetores. A instalação “Entidades” fez história quando apareceu com balões luminosos no cotidiano de algumas cidades e também na Bienal deste ano, em São Paulo. Assim, podemos ver o visível de um invisível que o “branco” não tem ontologia própria para se fazer vidente.
Uma vez, participei de uma mesa na qual eu ia dizer algo sobre a pedra coletada pelo gigante e a busca do herói por devolver a pedra ao corpo. Quando eu já havia começado a falar, olhei para a frente e o artista estava lá nos filmando, ele fazia uma live em alguma rede social com os antropólogos que falavam de Makunaima. Ele era neto de Makunaima.
Na última semana, “perdeu o chão” também quem defende a terra demarcada e homologada, luta pela autodeterminação e pelos direitos diferenciados dos povos indígenas. Diferencialmente, nossos corpos estiveram implicados, afetados nesse enlace de multirrealidades em luto.
Na Bienal de São Paulo encontramos facilitadores de realidades que não conhecemos, de pensamentos que muito mal exercemos, de modos de existir e diferir que não sabemos senão traduzir/transformar em uma linguagem para dizer o irredutível e um fio de multirrealidade. A Bienal criou em mim a sensação de que o multirrealismo já aconteceu e aconteceu sob o signo da convivialidade de mundos em transformação. Ao recolherem as obras ou cobri-las, os artistas, em especial os artistas indígenas, comunicaram a nós muitas coisas que precisamos escutar. Uma delas, que a eles pertence o controle da visitação de seus mundos. Outra, que não são um cabideiro do “homem branco” e nem território para garimpeiros.
Continua:
https://www.facebook.com/photo/?fbid=387819499472983&set=a.220613786193556

Comentários