ONÇAS
Por PAULO VICTOR ALBERTONI LISBOA com arte de MILA AURELIANO RAMOS
AS ONÇAS DAS TERRAS BAIXAS SUL-AMERICANAS são a expressão selvagem da maestria na cadeia predatória. As mais famosas são a onça-pintada, a onça preta, a onça parda. Nas cosmologias indígenas sul-americanas, a onça é uma forma de apreensão de outrem e do Outro, uma forma de apreensão que pode ser experimentada em corpo de outra espécie, tal qual a espécie humana e o indivíduo experimentam a afecção onça. Uma afecção onça pode funcionar como “medidor” do interjogo da identidade e da diferença em relações das mais diversas, incluindo a alteridade interespécie. Tal felino é usualmente referência da atividade guerreira, imagem e palavra que registram a intensificação enérgica, a máxima expressão da força individualizante. Na zona sul de São Paulo não há onças. Exceto quando há. Uma vez, durante a caminhada para averiguar armadilhas, há poucos quilômetros da aldeia, não sei o quanto próximos estávamos da Área de Proteção Ambiental (APA) Bororé-Colônia ou Capivari-Monos, encontramos indícios da presença de uma onça, talvez uma onça parda. Anos antes, nas redondezas da Terra Indígena, circulava a notícia de que biólogos fotografaram uma onça adulta perambulando pela região. Diante dos indícios felinos na proximidade das armadilhas construídas por aquele amigo guarani, toda a incursão foi alterada. Já não conversávamos, ele era um exímio leitor de marcas nas folhagens, nas árvores, nos caminhos, leitura que eu era incapaz de fazer. As armadilhas estavam todas vazias. Quando estávamos distantes do local da construção das armadilhas, eu perguntei se ele realmente achava que se tratava da presença de uma onça. A conversa foi muito reticente, imersa numa mistura de fascínio e medo. A presença da onça podia ser um indício de que ele havia encontrado um caminho próspero, possivelmente um indicativo da presença de outras formas de vida animal. No entanto, como é de se imaginar, as histórias de onças não participam da recepção alegre dos causos, a não ser que se minta sobre a onça ou o narrador queira ultrajá-la, diminuí-la. A onça tem sabedoria e inspira também o conjunto de saberes do xamanismo, a afecção onça é experimentada por todos os domínios ontológicos. Meu amigo organizou rapidamente uma nova incursão para o dia seguinte. Naquela manhã, antes da caminhada na direção das armadilhas, ele explicou a sua preocupação. Todos os animais que fazem morada transitam por lugares estratégicos e os seus movimentos podem marcar um caminho, dando a ver a “carreira” do animal. Por exemplo, as “carreiras” de tatu são muito procuradas; seria péssimo, ao contrário, encontrar um caminho de onça nas proximidades da aldeia – ainda que essa proximidade seja matéria de escrutínio dos guarani. Fizemos uma incursão bastante demorada. Nada de caminho de onça ou “carreira” de onça. Será que a onça havia passado por ali? Dias depois, ele me procurou para contar alegremente que observara muita vida nas redondezas. Era uma área provavelmente de segunda mata ou capoeirão, com pequenos trechos de mata alta embelezada por orquídeas e pequenas nascentes. Não me lembro bem quando, mas meses depois sonhei com uma onça parda em um daqueles caminhos. Nunca pude contar o sonho ao amigo, porque ele era profeta daqueles que muda constantemente de aldeia em aldeia. Mais ou menos um ano depois, quando retornei à aldeia, ele já havia ido embora.
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