PALETAS ELÉTRICAS PARA SUBVERTER A IDENTIDADE DAS PALAVRAS
O breve exercício é fazer passar uma divergência entre escritos, os de Viveiros de Castro e de Betty Milan, o que talvez não possa ser feito sem uma longa genealogia, passando por Saussure, Lévi-Strauss, Pierre Clastres, Lacan, Guattari, entre tantos outros. Então, aqui, pego um atalho.
Nos seus melhores momentos autobiográficos, Claude Lévi-Strauss enfrentou uma tese neokantiana, aquela da coerção das leis do pensamento sobre os objetos, e colocou uma assertiva para circular: o pensamento é um objeto “deste mundo” e o pensamento e o “mundo” participam da mesma natureza. Dessa maneira, Lévi-Strauss somou seus escritos à reflexão etnográfica do pensamento, voltando a história das epistemologias e metafísicas ocidentais aos outros pensamentos, às outras lógicas, especialmente àquelas relativas às sociedades antes denominadas “primitivas” ou “pré-lógicas”.
Se outros povos não organizaram enciclopédias e guias didáticos de filosofia, os seus sistemas de pensamento poderiam ser descritos - e transcritos. Aliado aos escritos psicanalíticos, o autor colocou em relevo a tarefa da descrição das lógicas inconscientes, a descrição das estruturas de pensamento. Como é sabido, as mitologias são materiais privilegiados nesse terreno e chegam aos ouvidos do etnólogo por via da sua escuta ou da sua leitura; o pensamento chega como rede de significantes, significantes-pensamento, objetos-significantes, objetos-pensamento, pensamento-passarinho, chuva-pensamento, ecologia-significante. A tradução escrita forja uma bagunça na sua cadeia de significantes, subversão de formas dominantes de pensar-dizer através de equívocos e objetos alienígenas que pousam em território nativo.
Tal formulação é avessa ao sujeito transcendental ou, se assim preferirem, impede a emergência de um ponto de vista absoluto e exterior aos objetos, exterior à linguagem. Tudo se passa por meio (ou no meio) da linguagem, da língua, da fala, da escrita. Imanência? Trata-se de uma tensão - quase inescapável – da linguística à digressão metafísica.
Mas o desejo não se inscreve no campo metafísico, a respeito do que os autores apontados inicialmente parecem ter acordo. Talvez por isso, em algum momento, a reflexão sobre o perspectivismo interespécie foi uma questão “pronominal” na escrita de Eduardo Viveiros de Castro porque o “sujeito” é, por assim dizer, uma posição; na escrita de Betty Milan, a subversão do poder foi, por sua vez, uma questão de “equívoco na língua”, a língua subvertendo a Identidade das palavras, proliferação de sentidos. É interessante notar que as teses d’a sociedade contra o Estado, do contra o Um de Pierre Clastres, atravessam as duas proposições.
Por fim, voltando a Eduardo Viveiros de Castro, se a alteridade é objeto de desejo – proposição do autor sobre a alteridade radical como objeto de desejo nas socialidades amazônicas –, a questão cosmopolítica fundamental é a do devir-outro e a da implosão do germe de transcendência; evidente, então, porque nas socialidades amazônicas a tarefa parental de “fabricar” um corpo convive com o temor da captura do ponto de vista, o risco da desumanização – afinal, o ponto de vista reside no corpo. Não são os xamãs aqueles que viajam para ter com as imagens no avesso, no opaco, uma diplomacia dos seus corpos utilizados como paletas elétricas, coloridas e acústicas?
Tentando levar os contrastes ao nível das organizações políticas, pensemos assim num paralelo. Em algum outro lugar, Betty Milan escreveu que o poder dá a carteira de identidade das palavras. Torcendo um pouco os escritos e as palavras dos dois autores, não é disso que se trata, para nós, estar sem documentos (como se fossem nossos ornamentos corporais) no momento de uma blitz policial? Cadeia de significantes.
Ingênuos e sem recursos, às vezes recorremos, ainda assim, a uma interpelação socrática: - sabe o que é, Seu polícia?... Mano do céu.
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