QUANDO MACONDO NÃO PODIA DORMIR, NEM LEMBRAR
O escritor Gabriel García Márquez reservou ao povoado de Macondo, em “Cem anos de solidão” (1967), um episódio de epidemia. Uma epidemia de insônia que chegava a Macondo e era anunciado por uma mulher indígena: a epidemia de insônia se transformaria numa epidemia ainda pior, uma epidemia de esquecimento.
Quando ninguém mais dormia, depois de semanas, ninguém mais sonhava. Úrsula preparou, então, uma beberagem. Assim, as pessoas voltariam a sonhar acordadas, em um estado de “alucinada lucidez”. Mas, a realidade vigilante foi coincidir com as deformações oníricas próprias dos sonhos dos habitantes de Macondo. As pessoas viam as imagens dos seus próprios sonhos e também as imagens dos sonhos dos outros. Então, a população habituou-se a não dormir e muitos se puseram a trabalhar como nunca, outros, a alucinar como nunca e como sempre. Houve quem começasse a ter saudades de dormir.
Em meio à epidemia de insônia, num dia qualquer Aureliano foi buscar o objeto de laminar metais e não se lembrou mais do nome do objeto. Ele tinha dificuldade de se lembrar do nome de todas as coisas. Frente a isso, Aureliano começou a marcar cada coisa com o seu respectivo nome de coisa e José Arcádio Buendía ampliou a prática. Depois percebeu que poderia se esquecer da utilidade das coisas e começou a escrever também as utilidades das coisas nas próprias coisas.
Mesmo assim, aos poucos, o sujeito vigilante viveu, em Macondo, a experiência do apagamento da sua própria memória, perdendo as recordações da infância, depois o nome das coisas, depois o nome próprio. Até se afundar numa “idiotice sem passado”. O povoado passou a viver uma realidade escorregadia. É como se o mundo tivesse desmundado, um pouco desentificado e um pouco desgrafado.
José Arcádio Buendía inventou uma máquina de memória, um “dicionário giratório”, com milhares de fichas com conhecimentos diversos, e mesmo assim o intento não parecia prosperar.
O decalque dos objetos e o dicionário com suas milhares de fichas não produziam os efeitos da língua e da “linguagem interior” do povoado e das pessoas de Macondo. Como se fossem atos incapazes de encadear e desencadear, comunicar e significar, atualizar Macondo.
O linguista Émile Benveniste (1966) afirmava que a linguagem é um instrumento e um campo de ação, portanto, relativos à enunciação, a linguagem como uma realidade transindividual. A mera etiquetagem da realidade seria insuficiente para o reconhecimento, a compreensão e a comunicação próprios de processos enunciativos. Talvez seja razoável dizer, com e sem Benveniste, que Macondo viveu uma crise no campo da linguagem, na realidade transindividual.
A etiquetação não era suficiente para tornar a realidade menos escorregadia. A indeterminação terminológica ocorria simultaneamente à indeterminação de sentido. O povoado de Macondo se desgravitava, desgrafava, brumificava. Para dizer ao modo de Salvador Dalí e seu método crítico-paranoico aplicado à literatura, era como se Macondo ingressasse numa psicologia não-euclidiana, numa síntese delirante.
Voltando a Benveniste, o linguista era de dar com a função da redução linguística. Sem o controle das categorias da língua, a conversão semiótica ou a expressão fonoacústica, a linguagem adentraria o domínio da indeterminação de sentido ou do surrealismo poético e de seus modos de estruturação da linguagem? O que é um “dicionário giratório”, útil, é verdade, senão um objeto delirante produzido pelo conhecimento paranoico?
Macondo se recompôs somente na ocasião do retorno de Melquíades. Como um ancião com “sineta triste dos que conseguiam dormir”, como “um homem decrépito” ele caminhou até o espaço decalcado de Buendía e retirou de sua maleta de objetos indecifráveis o remédio para o esquecimento de morte. Ninguém anotou o nome.
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