SUPERFÍCIES
- Paulo Victor Albertoni Lisboa
- 4 de mar. de 2022
- 2 min de leitura
Por PAULO VICTOR ALBERTONI LISBOA com arte de FERNANDA MAFRA
COMPREI UM POUCO DE TINTA NANQUIM, algumas folhas de papel Canson e também uns poucos pincéis com cerdas sintéticas, e tudo isso com o intuito de fazer pequenas experiências de linguagem, do recurso da escrita aos ponteios de manchas e borrões de que desconheço a técnica para fazê-los bem.
As manchas e os borrões sugerem para mim algo da filosofia da percepção de Maurice Merleau-Ponty, os arranjos singulares das manchas lembram também as nuvens do céu descrito por Claude Lévi-Strauss em sua viagem ao Brasil, a leitura, o sobrevoo de Jacques Lacan sobre a Sibéria.
Uma maneira de compor esses experimentos é borrifar pequenas gotículas de água sobre a superfície do papel. Os pequenos glóbulos ficam espalhados e espaçados, formando pequenos, médios e gigantescos corredores secos na superfície – atenção à escala gráfica, à carta topográfica. Só então procede o derramamento de nanquim que escorre diretamente pelos corredores secos, envolvendo-se com os glóbulos ou gotículas de água, ocasionando ramificações de tinta, linhas de água. No trânsito composicional há uma cartografia vir-a-ver esboçada, há subdivisões e seções, galerias e passagens mediadas por ilhas de tinta encontradas e com a hidrografia esparramada a esmo, estratigráfica.
Há escoamentos que se assemelham ao degelo nos estreitos, planícies alagadas pela cheia, céu rabiscado, floresta ou pântano, colinas e montanhas. Mesmo quando repetido o gesto, a performance é incapaz de formar ramificações idênticas às anteriores. O borrifador inscreve um agente da aleatoriedade nas fusões goticulares, nas defusões, nas subdivisões por escoamento e nas ilhas globulares. Tal fenômeno inscreve pequenas divergências na forma ou alterações de arranjo esboçado. Cada exercício de composição é único, como um céu de nuvens no entardecer.
O menor gesto de inclinação da superfície desloca gotículas e glóbulos de água, faz o nanquim correr em deslizamentos, juntando restos e arrastando ilhas, corredores e galerias numa deriva residual. Enquanto as primeiras gotas e rios de tinta secam é possível fazer novos deslizamentos das pequenas aglomerações de água e tinta ainda úmidas, passando mais uma vez os escoamentos tímidos sobre os arranjos existentes.
Novas manchas e novos borrões podem ser somados às manchas e borrões pré-formados. Aos poucos, as gotículas e os glóbulos formam barreiras mais ou menos permeáveis, dando a ver algo sobre a superfície transformada por inclinações ou declives, permeabilidades composicionais.
É possível borrifar e fazer chover de novo ao longo do processo, empurrando arranjos e estações em diferentes direções, produzindo novos deslizamentos, escoando em variadas cores sem saber ao certo a forma que os agrupamentos permeáveis e seus corredores tornarão visível e darão relevo. Se, por um lado, o manejo dos declives dificulta a composição escrita, por outro, os pincéis poderão formar algumas letras sobre os arranjos, como quem lê um bê-á-bá no pântano ou palavras naquelas nuvens. Sempre resta a ação da chuva e dos terremotos que poderão dissolver a letra a qualquer momento composicional, como se dissolvem as nuvens num céu agitado, como aquele que escreve na areia lá onde o mar arrebenta e apaga o escrito sem deixá-lo rasurado, ou, ainda, descobrir o lixo das enxurradas e os acidentes geográficos que fazem erodir o papel. Sem comprometer o nascimento no verso.
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