TECLAS
- Paulo Victor Albertoni Lisboa
- 4 de mar. de 2022
- 2 min de leitura
Por PAULO VICTOR ALBERTONI LISBOA com arte de FERNANDO BURJATO
NA SALA DE VISITAS HAVIA UM PIANO. A seleção desse local no espaço da casa há de ter algum sentido, a memória do piano na sala de visitas. Tenho a impressão de que o piano, mais precisamente a execução de peças musicais na sala de visitas, tenha algo a ver com a hospitalidade, a receptividade. Então, talvez a música estivesse na sala de visitas para uma chegada, um inesperado, um de repente. Ou estivesse ali enquanto máquina de imprimir o tempo doméstico, da casa.
Pianos são feitos de teclas. O teclado de um piano move pequenos martelos que acertam cordas. Pianos são instrumentos de cordas. Pianistas teclam e, além disso, também pisam nos pedais.
Quase sempre, o piano está lá acompanhado de um livro de partituras. Os pianistas leem linhas, sinais, pontuações, andamento, compasso, ritmo; na partitura está escrito o que fazem as mãos e os pés. Na antropologia, vou encontrar a apreciação estética da música assemelhada à apreciação estética do mito, essa apreciação enquanto supressão do tempo; na psicanálise, o intemporal.
Na sala de contas e notas da loja, havia uma máquina de escrever. Suas teclas acionam martelinhos com letras. Quando acionados, empurram fitas de tinta contra o papel, deslizando o texto e a página, alinhando o parágrafo. Os saltos de parágrafos, o início de um novo parágrafo ou a sua continuação em uma linha abaixo, exigem uma maquinação manufaturada. Embora a operação da máquina de escrever não seja propriamente música, há quem a tenha incorporado à música concreta, como foram incorporadas também as máquinas registradoras. Não foram poucas as vezes em que as sonoridades próprias das máquinas de escrever estiveram ligadas também à sonoplastia de ficção cinematográfica, nas cenas do trabalho, nos escritórios, nas redações de jornais, universo das máquinas de escrever crônicas.
Talvez esse contraste das máquinas de suprimir o tempo com as máquinas de escrever crônicas traduzam a difícil experiência de sair da atemporalidade do sonho (ou da sua multitemporalidade) e ingressar – desperto – na crônica cotidiana. Estão aí os milagres dos rituais matinais: tomar banho, escovar os dentes, vestir-se, passar um café, ligar a televisão e o rádio, acessar as redes sociais. Algo como um complexo ritual doméstico, no qual participam ingredientes rituais do cuidado que operam transformações diárias a partir da técnica de transposição psíquica. Assim, transitando o sujeito do mito à crônica, em linhas de vida, cruzando gêneros literários, convocando criatividades.
Há, sobretudo, máquinas de escrever que são próximas do relógio social, até mesmo aquelas máquinas de escrever críticas dirigidas ao relógio patronal que atrasa descanso ou acelera exaustão; há partituras clássicas que vão beber das fontes dos mitos, das epopeias, sem esquecer dos exercícios do paganismo, do misticismo e da religião.
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