Um diário mítico
A antropóloga francesa Nastassja Martin retoma a tradição dos cadernos de campo da antropologia e transforma os gêneros literários – a monografia e o diário – com os quais a objetividade e a subjetividade são escritas. Como se sabe, essa tradição disciplinar tem em vista a aprendizagem antropológica a partir dos “imponderáveis da vida cotidiana” e acaba por estimular a autoanálise no diário campo.
Embora essa aprendizagem seja característica da pesquisa de campo em antropologia, essa aprendizagem agrega elementos que estão dispersos em muitas outras práticas, em muitas outras áreas e especialidades, para as quais um aprendiz se retira do seu mundo pra ser um exilado em outro mundo, tornando essa experiência de exílio um exercício de registro da vida instável do aprendiz e também do sujeito. Por esse motivo, como afirmei em outro escrito, compreendo que a etnógrafa ou o etnógrafo escreve o Outro e inventa a si mesmo.
Nastassja foi ao encontro de um povo indígena chamado even e sua experiência não resultou apenas em contrastes de comportamentos estereotipados do âmbito de diferentes culturas, a sua e a dos even. Ou, para dizer de outro modo, seu trabalho não resultou apenas no contraste entre a ontologia animista dos even e a ontologia naturalista da qual a antropóloga partiu para a pesquisa de campo. É evidente que a antropologia foi, segundo as palavras da própria autora, uma porta de saída da sua civilização. Porém, um acontecimento fez o caderno subjetivo derramar-se sobre o caderno objetivo – cadernos que viviam separados.
O próprio livro Escute as feras – tradução à língua portuguesa – é composto por fragmentos de memória, pedaços de histórias, trechos de cadernos, de sonhos e escolhas conscientes, um livro só oriundo de mundos separados, então conectados – quem sabe, integrados.
Em agosto de 2015, “um urso e uma mulher se encontram e as fronteiras entre os mundos implodem”.
Não somente os mundos sociológicos implodiram. A fronteira ontológica de Nastassja e o urso implodiu, as suas fronteiras desapareceram – não só a fronteira da pele, também o que havia de estável na sensibilidade, na apreensão sonora e tátil, no pensamento, na imaginação, na palavra.
Por esse motivo, o elemento etnológico central do livro é a inserção do mito animista na interpretação desse evento, desse acontecimento: “é a indistinção que reina, sou essa forma incerta de traços desaparecidos sob as brechas abertas no rosto”.
Se no diário de campo são registrados diariamente acontecimentos cotidianos, no qual é registrado o “imponderável da vida cotidiana”, entra no diário de Nastassja o encontro com o urso e o registro do desaparecimento dos traços sob as brechas do rosto, a indistinção vivida como no tempo dos mitos animistas – perspectivistas interespécies – e o ingresso no tempo que precede a especiação.
Portanto, estamos diante de um diário mítico. Entretanto, Nastassja faz mais do que isso, uma vez que promove uma torção dos pares lógicos mito/ontologia:
mito greco-latino : ontologias naturalistas :: mito animista/ameríndio/leste europeu : ontologias animistas
porque a sua descrição move o acontecimento na direção das ontologias animistas, Nastassja viveu um acontecimento típico de um demiurgo das mitologias desses povos indígenas, ainda que a antropóloga tenha, por assim dizer, endereço naturalista na geopolítica das ontografias deste planeta.
O evento induzirá esse ingresso no “tempo onírico onde nada está estabilizado ainda, onde as fronteiras entre os viventes são ainda flutuantes, onde tudo ainda é possível”.
A desfiguração abre o corpo à indeterminação ontológica, ao entre mundos, uma condição perigosa e ingovernável, como ela irá dizer. Vive a concepção perspectivista interespécie de ponto de vista, aquela concepção que diz: o ponto de vista reside no corpo.
Depois do encontro com o urso, Nastassja, que já possuía um nome even, mátukha (“ursa”), será também renomeada miêdka, “aquela que vive entre os mundos”.
Mas Nastassja não se fixa, simplesmente, nesse lugar de miêdka, um lugar que é de respeito, porém, um lugar de evitação e medo entre os even.
Segundo a leitura que proponho, ela escreverá desde então a sua face desfigurada enquanto a máscara da reversibilidade anímica – sua máscara será sua persona, personagem, pessoa? –, compatível com a reversibilidade dos pontos de vista.
Ela mesma descreve a sua imersão em um evento que entrelaça todas as ontologias, “um vazio semântico”, num evento que produzirá o rosto deformado. Ela é enfática: “o fundo animista dos humanos é o rosto deformado da máscara”.
Embora não se sentisse mais a mesma, nunca se sentira tão próxima de sua “compleição anímica”, ao mesmo tempo, passagem e retorno.
É importante pontuar aqui que essa perda da figura no encontro com o urso e a fabricação dessa máscara da reversibilidade não foi produto apenas do urso. Há um trecho no qual ela descreve que as cirurgiãs ocidentais também fizeram a des-figura/re-figura, “um pouco de pele, meus cabelos, três dentes, um pedaço de osso e agora também um gânglio. A lista de minhas partidas perdidas na batalha só aumenta”.
É a imersão no mundo aberto onde múltiplos seres se encontram, em um corpo no qual mundos divergentes disputam a sua coabitação. Um corpo invadido por urso, cirurgiãs ocidentais, bactérias e placas de titânio: a fera é iconoclasta.
Às voltas com “o impossível que não deve suceder”, ela narra o caminho difícil da persistência junto aos hospitais e às mesas de operação: “É preciso cicatrizar. Encerrar é aceitar que tudo aquilo que em mim foi depositado me compõe a partir de agora, mas que daqui em diante não se entra mais”.
Ela seguirá a dizer que é momento de “aceitar a retomada numa forma de uma transformação estrutural... com elementos que são todos eles exógenos”.
Tal qual uma demiurga no tempo mítico, Nastassja acaba por escrever e oferecer a nós um mito individual da reversibilidade das ontologias e dos mundos, através desse diário mítico que resulta no derramamento do caderno preto sobre os cadernos coloridos. Ela é quem diz: o caderno preto não existirá mais.
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